terça-feira, 31 de maio de 2011

Ir pela sombra VIII

Micro-narrativa: A Traição.


A aranha percorreu indolente a sua teia, em direcção ao centro.

Mais uma presa a debater-se para se livrar da morte certa.
Que tédio!... pensaria a aranha, se as aranhas pensassem.

Era uma mosca.
Quando viu a aranha, tentou libertar-se uma última vez, em desespero.
Isto se as moscas sentissem desespero.

Quando a aranha já estava prestes a tocar-lhe, a mosca voltou-se subitamente para ela.
A aranha podia tê-la capturado. Podia estar numa posição de total superioridade. Podia injectá-la com veneno até que o seu corpo se liquefizesse e podia até comê-la depois. Mas nunca saberia o que era voar.

A aranha parou. Não era possível ter entendido o que um animal de outra espécie dissera, e no entanto ficou a olhar para a mosca durante muito tempo, indecisa.
Finalmente a aranha fez uma pergunta.
Como era voar.

A mosca disse que era a maior sensação de liberdade. Era a razão para se ter inventado a palavra liberdade. Era ter o mundo, e todos os elementos, e todos os cheiros, e todas as atmosferas, ao nosso dispor.

A aranha examinou demoradamente o seu próprio corpo. Depois, o corpo da mosca. Passou com lentidão as suas patas pelas asas da mosca. As suas quelíceras mortíferas, dois ferrões a pingar veneno, perscrutaram toda a carapaça da mosca.
Se as moscas sentissem emoções, esta teria conhecido o gosto metálico do medo puro.

Depois, subitamente, a aranha soltou a mosca.
A mosca levantou voo. Ficou a pairar sobre a teia e sobre os 8 olhos deslumbrados da aranha.
Ensina-me a voar.
A mosca fez um gesto subtil com a cabeça. Como quem diz.
Deixa-te cair.

A aranha atirou-se da teia.
E mergulhou para o negro da floresta.

A mosca não chegou a assistir à morte certa da aranha.
A imagem da queda foi a última que viu, antes de os seus órgãos se desfazerem.
Uma alegria perversa foi o seu último pensamento, antes de o seu corpo se liquefazer por dentro.

Já não sentiu quando a aranha a começou a comer.
Mas pelo menos a última imagem do sonho foi bonita, de doce e poderosa e saborosa vingança.

Isto se os bichos fossem capazes de sonhar.

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