quinta-feira, 16 de julho de 2009

Ir pela sombra ?

Desde que recebi esta tarde um certo telefonema, este blogue está em suspenso.
Não sei quando irá voltar ou em que moldes, pode ser para a semana, pode ser nunca...

Até lá, vão lendo o que está para trás, deixem aqui ameaças de morte, fechem a janela para nunca mais voltar, não sei, qualquer coisa.

Miguel.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Vai já daqui V

Porque o espectador já devia saber melhor do que olhar feito parvo para a televisão, deu com um programa onde estava Pedrito de Portugal a agitar uma toalha à frente de um touro.
Quando o insígne toureiro terminou de sacudir as migalhas, pôs a toalha debaixo do braço, e naquela praça foi o êxtase orgásmico.

Naturalmente que o espectador tem problemas com isso.

No fundo é igual a um concerto de hárde róque, onde o "êxtase orgásmico" faz parte integrante. A malta berra e salta, (excepto os conhinhas que se sentam em vez de ir lá cheirar do suor dos outros como é suposto), porque viu cuecas a voar para o palco, porque ouviu a beleza da música, porque sentiu a adrenalina a rebentar!

Ali na tourada também! A malta berra e salta, porque viu... viu...
...um gajo a desorientar um bovino.

- Catorreira, Bernardo Martim, você viu? Aquele empregado com a toalha de mesa acabou de trocar as voltas a um ruminante.
UAU!!!
A Glória!
Ah, não ser o espectador mulher, para que Pedrito de Portugal lhe fizesse um filho!

E depois veio-se a descobrir, a gema televisiva em questão chama-se, muito apropriadamente, "Arte e emoção".

Quanto a emoção estamos conversados. É que o touro estava mesmo confundido, e ensanguentado, que emocionante!
Mas afinal ainda é mais do que isso. É arte.

Só mesmo uma mente obtusa como a do espectador, que não faz mais nada na vida além de blogues vomitosos - sim, é uma palavra inventada agora, mas os neologismos aqui valem como verdades absolutas -, só mesmo o espectador, dizia-se, podia duvidar que espetar varas afiadas num touro é uma refinada forma artística.
Mas estava enganado. E por ter cometido tão grave falta, açoita-se, vilipendia-se e chicoteia-se todas as noites.

Agora, sim, finalmente ele entende!... Esfregar uma toalha nos olhos de um bicho daqueles é uma arte superior. É uma corrente de expressão do sublime, é a manifestação de uma nobre revolução criativa!
Oh, ninfas do Tejo, sede musas destes excelsos artistas, para que com a vossa inspiração eles possam espetar melhor os paus no lombo!!

Isto o que vale é que tudo é arte...
Nem de propósito, no outro dia o espectador viu numa montra o livro intitulado "a arte de arquivar". Com todo o respeito pelos arquivistas, a arte de aquivar?!
Tudo bem, é certo que arte pode ser praticamente o que se quiser, o belo pode manifestar-se de formas infinitas, mas parece ao espectador um caso grave de banalização de palavras.
Quando o espectador trabalhava no Pingo Doce nos tempos da faculdade, bem que lhe podiam ter dito que ele estava a praticar a "arte da reposição em prateleiras", que ele teria logo feito a coisa de outra forma!...

É a arte de chamar arte a tudo.
E agora o espectador despede-se, que vai ali ao multibanco tratar da arte da gestão de fundos de investimento com capital garantido.

Arte e emoção, haja paciência!
E a arte de acabar com as touradas? Isso é que era uma emoção.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Choram as pedras IV

Várias pessoas incomodam o proletário na rua, para saber porque é que ele fala tanto de Torres Vedras.
É que elas sabem que ele é de Oeiras, essa povoação magnífica na toponímia nacional.

Pois bem, o proletário, mais ou menos na altura em que iniciou este blogue sem ponta por onde se lhe pegue, também deu por si a ser atirado, no meio de vociferações, chicotadas e torturas feitas por pessoas com tridentes e que lançavam fogo da boca, para um trabalho no estupendo lugar de Catefica. Lá está, no concelho de Torres Vedras.

Caso haja dúvida sobre a Catefica de que se fala, é a que fica ao pé de Orjariça.
Agora, poderá quem, incrivelmente, não saiba onde é a Orjariça, ou mesmo - como é possível! - onde é Catefica. Para essas almas alienadas do mundo, o proletário passará a explicar:
Catefica é a aldeia onde fica a empresa que gere as auto-estradas.
Fim.

Ah, mas não pode ser assim tão desértica...
Pode, pode. Atenção, o proletário até gosta muito de lugares sossegados e sem confusão, e o sítio é bem bonito, mas que não se discuta quando ele diz que não se passa aqui nada.
Nada.
Nada, já foi mencionado?

Consegue-se contar os carros que passam na estrada da aldeia, benza-a Deus.
E geralmente são tractores ou carrinhas com animais, já que a maioria dos velhotes prefere passar simplesmente a pé, com uma enxada pelo ombro.
A grande novidade quando se chega a Catefica é saber se o moinho da aldeia está parado ou se soltaram as pás para rodarem com o vento. Está todo pintadinho e rodeado com uma cerca. Sim, não chegue alguém à metrópole para o roubar. Há por aí uma ladroagem de moinhos!

Mas a excelsa terra de Catefica tem surpresas mil, segredos profundos, misticismos por revelar.
Como a emoção de hoje, onde se meteu o rebanho de ovelhas que costuma pastar no prado em frente à janela?

Bem, a verdade é que também há fenómenos mais perenes, quem diria que existe um pântano de areias movediças do outro lado da estrada, onde o proletário se atolou ao tentar fotografar um poço?
(Depois teve de voltar ao trabalho com lama pelas pernas, mas ele acha que ninguém reparou)
E aquela colina onde está uma imensidão de antenas eólicas? Para quem não se impressionar com isso, informa-se que as mesmas se encontram rodeadas por um mar amarelo, o maior prado de azedas desde que há azedas no mundo. Ou seja, paisagens insólitas. Há fotos.

Mas aquilo que realmente define Catefica é os animais.
Não, não é ovelhas.
E por falar nelas, em nome de todos os santos onde foi parar o tal rebanho??
A teoria de que o pastor simplesmente as levou para o palheiro não convence ninguém. Até porque ele veio ao edifício das auto-estradas para se queixar de que as raptaram, e que desconfia que em conspiração com os gangues de assaltantes de moinhos há cartéis internacionais de contrafacção de lanifícios. Ele só pede que ao menos os raptores tomem atenção à Malhada, que não gosta de encontrar folhas no meio do feno...
(Pronto, está bem, esta última parte de o pastor vir queixar-se é mentira, mas isso é outra característica de Catefica, as pessoas têm de inventar novelas para ter alguma coisa para fazer)

Enfim, adiante, não é ovelhas. Será então o quê, coelhos?
De facto, há aqui mais coelhos na relva do que folhas de relva, mas isso não impressiona. Até à frente da casa do proletário há coelhos.

Não, os animais que distinguem Catefica são outros. Ratazanas. E lagartos.

Agora, o proletário tem de dizer uma coisa. A verdade é que desde que aqui está ele nunca viu uma única ratazana. Ou um rato, já agora. Nem sequer um porquinho da índia para amostra.
Mas a julgar pela quantidade de ratoeiras que há espalhadas pelos edifícios, elas devem ser aos milhares de milhões.
Numa terra que bate recordes, aqui está mais este, a maior concentração de ratoeiras do mundo. Em todos os cantos há não uma, mas duas ou três. Os autocolantes a dizer "não coma, perigo, veneno para ratos" estão em todas as paredes. O que mais agrada o proletário é o que fica por cima de uma das ratoeiras na copa, a que está mesmo ao lado do microondas.

Quanto a lagartos, bom, isso é outra história.
Andam por todo o lado, os petizes. Nos jardins, nos parques de estacionamento, consta que no outro dia entrou um na sala do tabaco. Diz-se que dá azar quando se atravessa um gato preto mesmo à frente, então e se for um lagarto de 30 cm quando o proletário vai a descer as escadas, dá o quê?

Ah, e depois os lagartos ficam presos nas ratoeiras. É um zoológico, isto.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Inventam-nas todas V

As maravilhas que acontecem numa semana:

Logo para começar, o distraído vê umas folhas de jornal no chão. Como acabou de passar por lá com o jornal na mão, fica na dúvida se foi ele que as deixou cair. Põe-se todo altruísta a apanhá-las, até que vê uma sombra, olha para cima, e topa com dois mal-encarados técnicos das obras, que as tinham lá posto para poderem trabalhar, o distraído estava a estragar aquilo tudo. O distraído bem se riu, mas eles não acharam graça.

Daí a algumas horas houve a noite do marisco. O sítio promete, é famoso pelas conquilhas.
Não tinham conquilhas.
Depois o distraído é que é distraído... Enfim, vêm amêijoas. Bastante boas, tirando o facto de terem lá pelo meio umas cascas estranhas e sem molusco. Sim, eram de conquilhas.
Adiante, a seguir pedem-se navalheiras. Vêm uns caranguejos raquíticos. Pergunta pronta, não foi isto o pedido. Resposta pronta, isso são navalheiras. E aqueles coisos compridos? Isso são navalhas. Pronto, em distracções está 1 a 1.
Ainda por cima os bichos não têm nada para comer e custam para cima de uma nota preta de dinheirão.
E não foi mencionado que os clientes é que tiveram de pôr a mesa. Pensando bem, os empregados do restaurante de distraídos não tinham nada.
Nem os mosquitos, que todo o repasto atacaram o distraído em voos 'kamikaze'.
Claro que tudo foi levado a rir, numa óptima noite.

Agora, mais distraído do que o distraído só o colega da frente, que uma bela manhã da fatídica semana resolveu enviar umas fotografias de mulheres nuas para um outro colega. Só que trocou o endereço e mandou para o administrador. O chefão, o bigue bósse.
O que vale é que depois de muita gritaria e risota, o gajo que monitoriza o correio foi lá apagá-lo a segundos de ser enviado.
Foi uma aclamação do salvador, só faltou levarem-no em ombros.
Juntou-se o edifício todo para ver o que era a algazarra, o distraído tem a impressão de que o administrador acabou por saber da história na mesma.

Mas o prémio para o mais distraído (talvez a palavra seja atrasado mental) de todos vai para o distraído/assassino/o raio que o parta que resolveu andar em contra-mão na A8, durante vários quilómetros.
Na zona de Óbidos, lá vai o Nissan Micra branquinho todo contente.
Não pára, não encosta, nada! Aliás, fez uma condução seguríssima, pois manteve-se na sua faixazinha da direita. Só que na contra-mão essa é a faixa da esquerda, e viram-se aqui vídeos de carros a desviar no último segundo e quase a partirem-se todos nas derrapagens.
Dentro do Nissan iam duas pessoas, seria aposta?
(O distraído já passou por isso uma vez, no ano passado. Só que no caso ele ia na faixa da direita, não teve de se desviar. Se por acaso fosse na da esquerda, como aquilo era uma lomba, podia não ter sido bonito. O distraído não conseguiu pensar noutra coisa durante toda essa noite...)

Mas é a opinião do distraído que nenhuma distracção se compara com aquela que se passou uns dias depois, que embora mais singela, ultrapassa todos os limites. O distraído comia em frente ao monitor e deixou cair umas migalhas. Quando olhou para baixo, reparou que tinha uma gravata posta... Que não conhece de lado nenhum, não sabe de onde veio e nunca viu antes na vida!
Sem comentários.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ir pela sombra II

Micro-narrativa: A banalidade.


Silva era amigo de longa data de Lopes.
Mais, Silva tinha por Lopes um afecto, admiração, e gratidão desmedidos.
Algo compreensível, tendo em conta o acontecimento com o autocarro - a meio da tarde e da avenida, um tropeção no passeio e um puxão salvador no último décimo de segundo, se Lopes não estivesse lá Silva teria ficado por ali.
Certamente que não se pode compreender a dimensão de uma dívida como esta, até que se passe por ela. Nesse dia, de lágrimas nos olhos, Silva chamou a Lopes o seu anjo da guarda. Como resposta, o anjo limitara-se a sorrir, entre os dois nada de novo...
De facto, já muito antes, quando percorriam as estradas poeirentas do Ultramar, houve aquela noite em que Lopes deu um berro imperativo, fazendo com que Silva paralisasse a perna no ar, levantada por cima de uma mina.
Ou talvez no seu sorriso Lopes se lembrasse dos tempos de recreios de escola, quando salvara vezes sem conta o seu protegido mais novo, de lutas, de testes, e principalmente de cobardes fanfarrões.
Portanto, andando para trás no tempo, o acontecimento do autocarro não foi sequer a primeira vez que o anjo salvou a vida de Silva.
E percorrendo para a frente o calendário, houve aquela manhã em que se deu o acidente na praia - quando Lopes, não poderia ter sido outro, vira o filho de Silva a desaparecer na água, nadara até lá e o trouxera, lhe fizera respiração boca-a-boca durante vários minutos, até ele cuspir sal e água e chamamentos pelo pai.
É por isso que, quando este relato começa, Silva tem a dever a Lopes o salvamento da sua vida, mais vezes do que consegue contar, e o salvamento do seu filho único, que vale mais vidas do que as que consegue contar.
E é nesta altura que Silva começa a obcecar-se.
A gratidão é demasiado grande para que ele a consiga suportar. Lentamente deixa que a angústia tome conta de si, enquanto enche cadernos com doutrinas sobre o que se deve dar a alguém que altera para sempre a nossa alma e essência, ou com planos sobre como pode aplacar a sua obrigação para com o anjo.
Como é pobre, e ainda por cima sendo Lopes rico, não lhe pode comprar nada, nem ele aceitaria. Também não há favores ou cortesias que paguem o seu infinito agradecimento. Silva percebe que a única forma de colmatar algum do seu fardo é salvando a vida de Lopes.
A partir daí, sempre que estão perto do mar, olha o horizonte à espera de uma onda gigante. Nas estradas procura avidamente a benção de um carro assassino. Reza com todo o ardor por acidentes e desgraças que sucedam ao anjo, e que ele esteja ao pé para o resgatar da morte. Anseia por comida engasgada, buracos no caminho, quedas de objectos, balas perdidas.
Para que se possa atirar de peito aberto e salvar a sua própria vida, juntamente com a do amigo.
Até que um dia não aguentou. Empurrou a multidão que esperava no semáforo, e com ela Lopes, para a frente do passeio e do autocarro que aí vinha.
Saltou logo atrás, salivando em antecipação pela honra de dar tudo àquele a quem tudo devia!...
No meio do embate e do pânico, algumas pessoas ficaram feridas, mas sem gravidade. Apenas uma ficou imóvel depois de ser passada pelas rodas do autocarro, um anjo a quem Silva tentou acordar, acarinhou, gritou, cobriu do frio, até que finalmente a polícia veio, o arrancou de cima do corpo e o levou algemado.
Todos os dias na prisão desejou morrer, mas novamente as suas rezas não foram ouvidas, e depois de sair ainda tem de suportar a dádiva da vida que Lopes lhe deu. No próximo Outono provavelmente virá no jornal, até mesmo os homicidas são entrevistados quando fazem 100 anos.