quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ir pela sombra II

Micro-narrativa: A banalidade.


Silva era amigo de longa data de Lopes.
Mais, Silva tinha por Lopes um afecto, admiração, e gratidão desmedidos.
Algo compreensível, tendo em conta o acontecimento com o autocarro - a meio da tarde e da avenida, um tropeção no passeio e um puxão salvador no último décimo de segundo, se Lopes não estivesse lá Silva teria ficado por ali.
Certamente que não se pode compreender a dimensão de uma dívida como esta, até que se passe por ela. Nesse dia, de lágrimas nos olhos, Silva chamou a Lopes o seu anjo da guarda. Como resposta, o anjo limitara-se a sorrir, entre os dois nada de novo...
De facto, já muito antes, quando percorriam as estradas poeirentas do Ultramar, houve aquela noite em que Lopes deu um berro imperativo, fazendo com que Silva paralisasse a perna no ar, levantada por cima de uma mina.
Ou talvez no seu sorriso Lopes se lembrasse dos tempos de recreios de escola, quando salvara vezes sem conta o seu protegido mais novo, de lutas, de testes, e principalmente de cobardes fanfarrões.
Portanto, andando para trás no tempo, o acontecimento do autocarro não foi sequer a primeira vez que o anjo salvou a vida de Silva.
E percorrendo para a frente o calendário, houve aquela manhã em que se deu o acidente na praia - quando Lopes, não poderia ter sido outro, vira o filho de Silva a desaparecer na água, nadara até lá e o trouxera, lhe fizera respiração boca-a-boca durante vários minutos, até ele cuspir sal e água e chamamentos pelo pai.
É por isso que, quando este relato começa, Silva tem a dever a Lopes o salvamento da sua vida, mais vezes do que consegue contar, e o salvamento do seu filho único, que vale mais vidas do que as que consegue contar.
E é nesta altura que Silva começa a obcecar-se.
A gratidão é demasiado grande para que ele a consiga suportar. Lentamente deixa que a angústia tome conta de si, enquanto enche cadernos com doutrinas sobre o que se deve dar a alguém que altera para sempre a nossa alma e essência, ou com planos sobre como pode aplacar a sua obrigação para com o anjo.
Como é pobre, e ainda por cima sendo Lopes rico, não lhe pode comprar nada, nem ele aceitaria. Também não há favores ou cortesias que paguem o seu infinito agradecimento. Silva percebe que a única forma de colmatar algum do seu fardo é salvando a vida de Lopes.
A partir daí, sempre que estão perto do mar, olha o horizonte à espera de uma onda gigante. Nas estradas procura avidamente a benção de um carro assassino. Reza com todo o ardor por acidentes e desgraças que sucedam ao anjo, e que ele esteja ao pé para o resgatar da morte. Anseia por comida engasgada, buracos no caminho, quedas de objectos, balas perdidas.
Para que se possa atirar de peito aberto e salvar a sua própria vida, juntamente com a do amigo.
Até que um dia não aguentou. Empurrou a multidão que esperava no semáforo, e com ela Lopes, para a frente do passeio e do autocarro que aí vinha.
Saltou logo atrás, salivando em antecipação pela honra de dar tudo àquele a quem tudo devia!...
No meio do embate e do pânico, algumas pessoas ficaram feridas, mas sem gravidade. Apenas uma ficou imóvel depois de ser passada pelas rodas do autocarro, um anjo a quem Silva tentou acordar, acarinhou, gritou, cobriu do frio, até que finalmente a polícia veio, o arrancou de cima do corpo e o levou algemado.
Todos os dias na prisão desejou morrer, mas novamente as suas rezas não foram ouvidas, e depois de sair ainda tem de suportar a dádiva da vida que Lopes lhe deu. No próximo Outono provavelmente virá no jornal, até mesmo os homicidas são entrevistados quando fazem 100 anos.

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